PRÁTICAS SEXUAIS DITAS "DESVIANTES" : PERVERSÃO OU DIREITO À DIFERENÇA?
in Revista Terapia Sexual - Clínica - Pesquisa e Aspectos Psicossocias, Vol. VI, 1, 34-52.
(Trabalho apresentado no 16th World Congress “Sexuality and Human Development: From Discourse to Action” 10-14 March, 2003 Havana, Cuba)
Autora: Maria Cristina Martins, Psicóloga Clínica e Especialista em Sexualidade Humana – Unicamp - Campinas – SP – BRASIL
E-mail: machriss@globo. com
Co-autor: Paulo Roberto Ceccarelli, Psicólogo, Psicanalista, PhD em Psicopatologia e Psicanálise por Paris VII, Paris – França; Professor na Graduação e Pós-graduação do Dep. De Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – BRASIL
E-mail: pr@ceccarelli. psc.br
Homepage:
www.ceccarelli. psc.br
Final
Dados quantitativos da amostra pesquisada (n = 111)
%
Sexo
Masculino
93,7
Feminino
6,3
Idade
18-25
18,9
26-35
41.4
36-45
30.6
46-55
8.1
+55
0.9
Orientação Sexual
Heterossexuais
84,7
Bissexuais
9,9
Gays
5,4
Estado Civil
Casados
31,5
Solteiros
52,3
Separados/Divorciad os
16,2
Escolaridade
Nível Secundário
16,2
Nível Universitário Completo
70,3
Pós-Graduados
13,5
Religião
Católica
53,2
Protestante
2,7
Espírita
12,6
Agnóstico
5,4
Ateu
5,4
Nenhuma
14,4
Outras
6,3
Práticas
Dominação/ Sadismo
32,4
Submissão/Masoquismo
43,3
Switchers ("role reversal")
15,3
Crossdressing
1,8
Pedolatria
4,5
Outras
2,7
Participação da parceira
Sim
36,1
Não
25,2
Sem parceira fixa
38,7
Como Como podemos perceber na tabela 1, a grande maioria da amostra total (n =111), é composta de heterossexuais, mas cabe a observação de que apenas sete (6,3%) respondentes são do sexo feminino, sendo quatro (4) oficialmente casadas e três (3) solteiras. O número de pessoas com parcerias que possuem e praticam as mesmas fantasias sexuais, (36,1%), foi maior do que o esperado. Interessante salientar que, nas práticas sexuais envolvendo a Submissão e o Masoquismo (43,3%), apenas seis (6), são mulheres e heterossexuais, enquanto que o restante do grupo pertence ao sexo masculino independente de orientação sexual. A religião católica (53,2%) é a que tem o maior número de seguidores. O nível de escolaridade mostra-se elevado, sendo que 70,3% dos respondentes têm curso superior completo e 13,5% são pós-graduados.
CONCLUSÃO
Abaixo citaremos recortes de alguns relatos para ilustrar a parte qualitativa do estudo, onde os respondentes falam a respeito de como se sentem em relação às suas vivências sexuais e aos tópicos que foram abordados no questionário por eles respondido.
-SS, pós-graduado, fetichista, 35 anos, casado: “Quando tinha aproximadamente 5 anos, lembro-me que tinha tesão em vestir camisolas de cetim, gostava de urinar nelas e sentir o cheiro da urina por vários dias.....Desde criança percebi que tinha desejos “diferentes”, mas só fui entender de fato que esses fetiches não são uma “aberração da natureza”, há uns três anos com o advento da Internet.... na net, vi, conversei e sei que tem gente com os mesmos gostos”.
- S, administrador de empresas, masoquista, 34 anos, casado, lembra: “Tinha uma brincadeira de policia e ladrão onde as meninas eram sempre da polícia e os meninos ladrões. As meninas corriam, pegavam e prendiam os meninos. Lembro que quando eu era preso sempre pedia para ser amarrado, pois senão fugiria, assim fui sem perceber desenvolvendo meu instinto de submissão ao sexo feminino...Uma fantasia que me marcou muito na infância e na adolescência foi a figura da “Mulher Gato” do seriado Batman.....hoje ao rever com olhos mais experientes dá para perceber uma explicita citação fetichista. A Mulher Gato era linda, aquela roupa em látex, bem justa e colada ao corpo...sempre que capturava os heróis , eles eram amarrados e ficavam aos pés dela ...sempre era mostrado a Mulher Gato em seu esconderijo sentada em uma cadeira tipo trono em um pedestal e seus ajudantes ficavam sentados no chão aos seus pés...às vezes ela dava um jeito de pisar em um ajudante...fetiche puro”.
-Fbond, importador, fetichista bondagista, 31 anos, casado, lembra: “Levo o bondage e o fetichismo extremamente a sério, não sou adepto de nada que provoque dor, mas gosta da sedução aliada à bondage, cinta-liga, roupas insinuantes (mas não vulgares), sou culto....descobri que era fetichista aos 8 anos de idade assistindo um filme do Jerry Lewis e hoje tenho um acervo com mais de 150 fitas do gênero....Considero- me uma pessoa extremamente amiga, por isso acho um absurdo comparações que coloquem um fetichista na casa dos “anormais”. Talvez até haja casos assim, mas não se trata da grande maioria”.
-Al Z, dominador, pós-graduado em análise de sistemas, 38 anos, casado, relata: “Desde pequeno eu apreciava quando via cenas em que apareciam mulheres presas, amarradas ou surradas (normalmente em filmes), mesmo desconhecendo totalmente o sexo... acho que era instintivo.. ...Despertei totalmente para minhas fantasias há uns cinco ou seis anos atrás quando entrei acidentalmente num site ...na época eu tinha 32 ou 33 anos e esse fato mudou totalmente a minha vida...O bondage e o spanking ( bumbum feminino), me excitam bastante e também outras formas de dominação física e psicológica, como por exemplo, transformar a parceira em uma cadelinha colocando correia e correntinha guia....Meu relacionamento com minha esposa é do tipo “padronizado”, ou seja, segundo ditam as regras religiosas e sociais para um casamento... Ela não sabe das minhas incursões no mundo virtual, nem tampouco que procuro alguém para realizar minhas fantasias no “real”. Sinto-me uma pessoa absolutamente normal....O que penso é que a sociedade é quem realmente tem medo de admitir que quem gosta de BDSM ( dentro do contexto erótico, é claro), é um ser humano normal. As pessoas buscam sempre viver cada vez com mais tesão e o BDSM é apenas mais uma forma alternativa de alcança-lo plenamente. ...Nunca abri o livro da minha vida tanto assim como estou fazendo com você, mas me sinto muito bem, porque isso estava me sufocando demais”.
-J, analista de sistemas, submisso, 32 anos, solteiro: “Sinto-me perfeitamente normal e até porque não privilegiado, por saber explorar a minha sexualidade de uma forma diferenciada e muito mais intensa do que a maioria das pessoas. Fico muito feliz por ter capacidade suficiente em entender o meu fetiche e tirar proveito dele de forma sadia, segura e muito peculiar”.
-N, assistente administrativa, bondagista, 26 anos, solteira: “Gosto de ser amarrada e imobilizada completamente, me sentir completamente vulnerável nas mãos do meu parceiro, mas não ficar passiva e sim relutar em estar amarrada, como se estivesse sendo obrigada a estar naquela situação, não aceitar passivamente que o outro me amarre, mas “fugir”, tentar me soltar, mas acabar sendo “vencida” pela força e técnica do meu parceiro...a privação dos sentidos como a visão e a fala....assim os mesmos ficam ainda mais aguçados, mas não saber o que a pessoa vai fazer é uma excitação sem igual... estar amordaçada é uma sensação incrível... Juntar tudo isso é uma sensação inexplicável ... Sinceramente, me sinto mais normal do que as outras pessoas, eu me sinto assumida. Acho que o que não é normal é as pessoas se podarem, ou mesmo viverem um relacionamento de aparências e procurarem fora do relacionamento a realização de suas fantasias... acredito que uma pessoa será completamente feliz quando procurar um relacionamento que lhe complete no todo... difícil, mas acho que mais difícil ainda é viver duas vidas...em uma delas você vai encenar... A sociedade em que vivemos é hipócrita... todos têm suas fantasias, mas para se encaixar no padrão “normal”, ninguém se assume e ainda critica e se escandaliza coma opção do próximo. Acredito que cada um é dono da sua vida e não tem que dar satisfação para ninguém do que gosta ou deixa de gostar dentro de quatro paredes, ou melhor, acho que devemos ser livres para vivenciar nossas fantasias e outras coisas cotidianas também, é claro, respeitando o limite e espaço do outro. Para mim o BDSM é uma forma de prazer, é um mundo vasto com muitas ramificações e cada pessoa escolhe dentro dessas a que lhe dá prazer ...eu escolhi a minha e não me incomoda o fato da sociedade não aceitar ou me achar uma aberração... eu me sinto mais normal que todos, pois sou sincera comigo mesma, me assumo e me aceito assim e isso me faz feliz ...”.
- M.H, dentista, crossdresser, submissa, 39 anos, casado: “Sou casada e minha esposa participa de tudo e me domina há mais de um ano...Como você pode perceber sou uma crossdresser submissa e como tal me porto. Sou uma sissy da minha esposa. Me visto sempre que posso feminina, tenho todos os afazeres da casa e sou uma mulher para minha esposa. Sou totalmente passiva e ela é ativa ....freqüentemente apanho e sou humilhada, o que adoro...fui descobrir que o que eu sentia e fazia estava em total sintonia com o universo BDSM, mais ou menos aos 18 anos. Mas sem saber que era uma postura BDSM, desde que me conheço por gente ...aos 6 ou 7 anos de idade...Adorava brincar de casinha com meus primos e primas e sempre eu era a empregadinha, sempre trabalhando e humilhada. Este era o papel que eu escolhia. Isto me dava prazer e no meu ponto de vista encaixa no BDSM...Aos 10 anos gozei a primeira vez quando pus uma saia de uma tia...gozei sem ao menos me tocar. Desde então sempre fui fora dos padrões , mas aos 16 anos notei que era “diferente”. Seria eu gay? Mas como ser gay se não me interessava e nunca me interessei por homens? Mas se não era gay, por que me fantasiava no papel feminino? ...As pessoas infelizmente vivem num padrão proposto hipócritamente por esta sociedade machista e repressora em que vivemos.”
- ZZ, assistente de faturamento, podólatra submisso, 34 anos, casado: “O meu relacionamento com minha esposa é o melhor possível em todos os sentidos. Ela sabe de minha atração por pezinhos, tanto é que começou a trata-los bem melhor e de vez em quando, quando transamos, ela me dá umas boas chineladas e eu gosto muito. Desde que não prejudique física ou emocionalmente ninguém e ambos estejam de acordo, vale tudo na prática sexual entre um casal. Sobre como a sociedade vê e julga os meus atos, isso para mim não tem a mínima relevância”.
-JP, advogado, sádico, 38 anos, casado: “Sinto-me um privilegiado por ter certos interesses sexuais diferentes da maioria das pessoas e sempre conseguir realizá-los. O BDSM é muito complexo, pois existem diferentes níveis de SM e me incluo em um intermediário. ..algumas práticas me soam indigestas, como por exemplo a coprofagia, humilhação em público, perfurações, cortes ou queimaduras, mas como diz o ditado, “ se feito com o consentimento de ambos o problema é deles...”.
Podemos sugerir que as pessoas que fizeram parte da amostra pesquisada, longe de representar a totalidade de indivíduos com práticas sexuais não convencionais na sociedade brasileira, sentem-se em sintonia com suas diversas preferências sexuais, as quais são experienciadas como prazeirosas , sentindo-se também privilegiadas por terem uma sexualidade “diferenciada ” daqueles que vêem no sexo e nos papéis convencionais , a única forma de expressão para o amor, intimidade e para a realização de suas fantasias sexuais. Não podemos afirmar pelos dados colhidos e relatados, que os praticantes de BDSM e Fetichismo que participaram desse estudo, possam ser chamados de “parafílicos”. Preferimos descreve-los como praticantes esclarecidos, bem informados, e conscientes daquilo que consideramos como variações na expressão da complexa sexualidade humana adulta.
É muito clara a importância do uso da Internet na formação de uma subcultura BDSM consensual no Brasil, não só para a comunicação, obtenção de informações entre praticantes afins, mas também como um mecanismo de inclusão social, reunindo milhares de pessoas que compartilham das mesmas fantasias e práticas sexuais não convencionais. Esse estudo foi possível, justamente pela facilidade de acesso, anonimato e a facilidade que a Internet proporciona para todos os seus usuários. Cooper et al (2000, p 6), sustenta que a Internet oferece a oportunidade para a formação de comunidades virtuais, onde indivíduos isolados e discriminados, como por exemplo, gays e lésbicas, podem se comunicar entre si sobre assuntos sexuais que sejam de interesse dessa comunidade
Ao se darem conta do número de pessoas “iguais”, a sensação de isolamento e de ser “diferente” diminui ou desaparece e um novo sentido de “pertinência” (“belonging”) e identidade surge para aqueles que, anteriormente ao advento da Internet, sentiam-se “anormais” e “fora do padrão” por não terem com quem compartilhar e dividir seus anseios e suas fantasias devido ao preconceito e estigma em relação a tudo o que se desvia da “norma” ou “padrão”. Podemos sugerir que a Internet pode servir como um “salva-vidas” virtual” , pois ao dar aos praticantes de BDSM, fetichismo e outras minorias sexuais, a oportunidade de “sair do armário”, proporciona um ambiente onde não há repressão, preconceito e onde tudo é possível no mundo da fantasia, dando também a oportunidade para que essas fantasias saiam da “virtualidade” e possam ser concretizadas no mundo “real”. Segundo Bader (2002, p 259), o porque de algumas pessoas “atuarem” ( “act out”) suas fantasias e outras não, não encontra uma resposta fácil. Ainda segundo a perspectiva teórica deste autor, é mais fácil compreender porque uma pessoa desenvolve determinada fantasia ou prática sexual, mas raramente pode-se afirmar o porquê ela “atuou” ou simplesmente a manteve a nível de fantasia .
O mundo tem passado por mudanças tecnológicas quase impossíveis de serem acompanhadas na área da concepção da vida humana: o bebê de “proveta” e a inseminação artificial são práticas corriqueiras antes impossíveis de serem imaginadas e concretizadas, como o é agora, a possibilidade da clonagem de seres humanos em laboratórios. O novo assusta, provoca medos e inseguranças e sentimentos de desproteção. Mas é inegável que mudanças nas mentalidades estão a caminho nesse novo milênio. A tradição judaico-cristã que forma a base religiosa da sociedade brasileira há séculos, mostra-se anacrônica perante os fatos mencionados e pelo o que ainda está por vir. A tão propagada vida “naturalmente heterossexual” dos animais, que serviu como justificativa para o encarceramento do desejo sexual e do prazer pela instituições religiosas, começa a cair por terra com as últimas pesquisas científicas sobre a vida sexual dos animais, as quais demonstram que as “práticas contra a natureza”, são parte também da sexualidade animal:
www.subversi ons.com/french/ pages/science/ animals.html.
Para onde vamos, já que os conceitos e normas psico-sociais, religiosas e culturais, que definiam a noção de “normalidade” , não mais se aplicam à sociedade pluralista que se nos apresenta? A nossa tradicional ética sexual seguida há centenas de anos, não mais se adequai às mudanças sócio-culturais e aos novos desafios do Século XXI. Vivemos numa sociedade plural, onde começam a se tornar visíveis as mais diversas expressões da sexualidade humana adulta, as quais querem ser aceitas, reconhecidas e legitimizadas. Expressões sexuais que demonstram maturidade, respeito e consciência entre aqueles que as praticam. Cabe salientar que, por se sentirem confortáveis e em egossintonia com suas práticas sexuais, tenha sido este o motivo que tenha levado esses indivíduos a participarem desse estudo A linha que separa as práticas consensuais BDSM e as práticas sexuais ditas “perversas” “é muito tênue. Mas é importante que se saiba distinguir umas das outras.
E com base nesta distinção, o presente estudo demonstrou que, apesar de limitado no seu alcance, é um direito humano legítimo ser “diferente” da maioria e conseqüentemente, ter essa “diferença” respeitada e aceita pelos demais.