Racismo e globalização
Teun A. Van Dijk
La Paz - O jornalista Carlos Morales entrevistou em La Paz o lingüista e cientista cognitivo holandês, docente e pesquisador na Universidade Pompeu Fabra de Barcelona, Teun Van Dijk. Teun Van Dijk chega na Bolívia com uma longa trajetória como pesquisador no campo da lingüística e da análise do discurso. Conhecido no mundo pela sua obra La noticia como discurso (Paidós,1990) e, em seguida, pelo seu trabalho intitulado Racismo y análisis crítico de los medios (Paidós, 1997), Van Dijk se distinguiu devido ao seu método crítico de análise sobre o que fazem os meios de comunicação e como constroem as notícias.
Desde o princípio se define como um "cientista crítico", que se posiciona contra o racismo e a favor dos mais desvalidos e vulneráveis da sociedade. Desde os anos 80 levantou um imenso projeto de pesquisa a nível transnacional que agrupa pesquisadores da Europa, dos Estados Unidos e da América Latina com o mesmo fim: perseguir os traços dos discursos dominantes de nosso tempo.
Impressionado pelos movimentos sociais na América Latina e, particularmente, por aqueles que se tornaram notícia na Bolívia nos últimos anos, Van Dijk deu uma conferência e um curso sobre análise do discurso por convite da Universidade Católica Boliviana (UCB).
Em que medida está aumentando o racismo e a discriminação com a globalização?
Os discursos do racismo não são novos. Existem há séculos. Os gregos já chamavam de barbaroi os estrangeiros que eram diferentes deles e, por isso, tinham menos direitos. A palavra "bárbaros" vem de barbarein, que quer dizer "balbuciar", ou seja, aquele que fala um idioma que não se entende, que não é o nosso. Logo viria a idéia da superioridade européia, branca, ocidental, em relação às pessoas de outros continentes. Isto aumentou muito com as explorações de outros continentes. Desde 1492, quando Cristóvão Colombo descobriu estas terras, já havia uma maneira de descrever e nomear os demais como diferentes de nós europeus, em geral, com um tom de superioridade. Naquela época, o debate era se os selvagens tinham alma ou não. Desde um ponto de vista religioso, os colonizadores se perguntavam sobre estas pessoas que não eram cristãs. Depois, nos séculos XVIII e XIX, surgem as ciências das raças que mediam os crânios de forma absurda para estabelecer a superioridade de umas raças sobre outras. Os cientistas inventaram o racismo, o que rapidamente foi utilizado pelos políticos para legitimar a escravidão e a dominação européia sobre os não-europeus. Então, são fenômenos muito antigos. A colonização era uma forma de globalização. A palavra "globalização" é nova, mas em muitos sentidos o fenômeno é muito velho.
O que a globalização traz de novo em relação ao racismo, já que sabemos sobre a exclusão de milhões de pessoas em meio a estas profundas transformações tecnológicas, políticas e econômicas que estão ocorrendo nestas últimas décadas?
No plano da cultura, por exemplo, os intercâmbios são muito mais rápidos que antes devido aos novos meios de transporte e internet. Agora vemos como um fenômeno tremendo a dominação econômica dos Estados Unidos. Entretanto, os princípios básicos dessa exclusão e da discriminação são bastante antigos. O que vemos, hoje, são essas grandes migrações de pessoas, de regiões mais pobres a outras de maior prosperidade. Então, quando surgem problemas econômicos no sistema, se culpa os imigrantes porque são um excelente grupo para responsabilizar, visto que não têm o direito de votar e não têm poder. Com os imigrantes está acontecendo o que antes acontecia com os judeus. Há uma imigração muito forte para a Europa, o que está trazendo consigo uma importante mudança social no sentido da diversificação cultural. Hoje, em Amsterdã, alguém pode não acreditar onde está, porque no centro se vê mais pessoas não-européias, não-holandesas. Podem-se encontrar pessoas do Marrocos, do Suriname, das Antilhas, da Turquia e de todas as partes do mundo. O mesmo ocorre em Londres ou Paris.
Como se constroem estes discursos sobre os imigrantes e sobre os "outros" que são discriminados?
Depois de analisar os discursos das pessoas na rua, de pessoas comuns, em bairros pobres e em bairros ricos, cheguei à conclusão de que grande parte da produção e reprodução dos discursos racistas é uma coisa das elites. Isto é assim porque as elites têm o controle sobre o discurso público. São elas que fazem as leis, escrevem os jornais, fazem a ciência, fazem a justiça. O discurso dominante em uma sociedade é o discurso das elites e não das pessoas comuns. A pessoa comum quase não tem voz no discurso público. Se a tem, é através dos partidos políticos -de esquerda ou de direita-, mas, outra vez, são as elites que são os líderes desses partidos. Após muitas análises dos discursos, observamos que as elites pré-formulam o racismo. Talvez não de uma maneira tão extrema e explícita. Porém, elas são as primeiras a falar "deles" como diferentes, como delinqüentes, como aqueles que não respeitam nossa cultura e nossos valores. Enquanto que as pessoas comuns não sabem nem do que se trata. Os políticos, os policiais, os juízes, os empresários e os jornalistas são os primeiros que sabem e identificam que os imigrantes estão chegando. As elites definem se essas pessoas são "boas" ou "más" para a sociedade que os recebe.
Por que fazem isso?
Por temor, por ignorância. As elites definem os imigrantes como pessoas que "não são como nós". Existe um temor que a nossa cultura dominante possa se alterar devido a sua chegada. O ex-presidente da Generalitat de Catalunha, Jordi Pujol, por exemplo, expressou que tinha medo que a cultura catalã sofresse porque os imigrantes falam outras línguas, por exemplo, os latino-americanos, que falam espanhol. O nacionalismo tem medo cultural. Grande parte do racismo das elites é cultural, tem a ver com a língua, os hábitos, os costumes. A isto se somam os problemas do mercado de trabalho. Isto deveria se expressar muito mais entre os mais pobres, porque é ali onde se compete por um posto de trabalho. Porém, a discriminação também está no sistema que controlam as elites. Por si mesmas não são racistas, mas são as rotinas burocráticas que contribuem para a marginalização dos demais.
Que papel interpretam neste processo os meios de comunicação? De que maneira as rotinas jornalísticas contribuem ou não para a discriminação?
Os jornalistas não são diferentes dos outros membros das elites. Nesse sentido, não são mais ou menos racistas que as outras elites. Em segundo lugar, não necessariamente estão na origem das expressões racistas, mas sempre estão em cooperação com outras pessoas, isto é, políticos, empresários e fontes de informação que determinam essas expressões de discriminação. Os jornalistas como grupo profissional e os meios de comunicação como organizações sempre estão em simbiose com outras instituições. Por exemplo, a relação entre jornalistas e políticos é impensável sozinha. São páginas e páginas a cada dia de relações entre ambos setores. O mesmo ocorre entre jornalistas e cientistas sociais; entre os jornalistas e os policiais; entre os jornalistas e os juízes; estas fontes dão quase todo o material necessário para encher o jornal. Existe muito pouco no jornal que seja produção do próprio jornalista, uma alta porcentagem provém de fontes de fora do jornal. Noventa por cento dessas fontes de informação faz parte das elites e não do que ocorre na rua. Estas elites definem a forma como se chamam as coisas no mundo do público.
Bom, mas os jornalistas tentam comunicar a realidade que ocorre em nossos países da forma mais ampla...
Claro, mas a comunicação que estabelecem os jornalistas não é somente de cima para baixo, entre os comunicadores e os leitores; mas também entre os comunicadores e as elites. É através dos jornais que os políticos sabem o que acontece no país. O mesmo acontece com os cientistas que descobrem problemas através do que lêem no jornal, e logo publicam no mesmo jornal. É uma simbiose. As notícias se formam com outros textos que produzem essas fontes. Nesse sentido, o jornalista tem uma missão fundamental de intermediação entre as elites. Então, quando essas elites manifestam ou deixam de manifestar certos aspectos da realidade de forma sutil sobre os imigrantes, por exemplo, os meios o fazem de uma maneira mais contundente; e, finalmente, as pessoas lêem esse mesmo fato de uma maneira muito mais exagerada. É todo um processo onde se aumentam ou diminuem certos aspectos da realidade. Assim, nas rotinas do jornalismo nasce uma forma de ver as coisas que em si não é racismo, mas que tem um efeito racista.
Se na Europa há um assalto onde está envolvido um cidadão turco, o jornal diz em uma manchete "um turco assaltou um local"; então as pessoas sintetizam o fato dizendo que os turcos estão envolvidos na delinqüência com uma memória muito parcial.
Os jornais "sérios" se defendem dizendo que este é um problema só dos meios sensacionalistas. Isso é assim?
Isso é um mito. Segundo nossos estudos, a porcentagem de artigos onde se associam os imigrantes com a delinqüência nos jornais chamados "sérios" é quase a mesma que a dos denominados jornais sensacionalistas. As manchetes não serão tão terríveis, os formatos serão mais dissimulados, mas também a imprensa "séria" generaliza a imigração como uma invasão e uma ameaça.
Em que medida a linguagem pode se converter em instrumento para discriminar os outros? Certos setores na Argentina designam os imigrantes bolivianos como "bolinhas" Isto é discriminatório?
Não são os termos ou as palavras, mas sim os conceitos. "Bolinha" é só uma palavra e você pode dar o significado que quiser. "Mouro", por exemplo, que antes significava somente as pessoas do norte da África, hoje é um termo associado com os marroquinos com uma conotação negativa. O problema é o conteúdo que se dá às palavras, se é positivo ou negativo.
Porém, alguns jornalistas dizem, "bolinha" fica melhor em uma manchete do que "imigrante boliviano"; uma questão de espaço...
Se o argumento é que é uma palavra curta, existem muitas outras palavras que podem ser imaginadas e pensadas para representar esse grupo. Pode-se dizer imigrantes ou simplesmente bolivianos ou pensar palavras mais neutras. A palavra não importa muito e sim todas as idéias que estão por detrás dela. O que se associa com essa palavra. Se a associação é sempre com a delinqüência, com a ênfase em alguns aspectos físicos (baixos, morenos), com a agressividade ou violência ou com o fato de designar o outro como menos, então a palavra se enche de aspectos negativos. Na Holanda ou na Alemanha as próprias palavras "estrangeiro" ou "imigrante" têm em si mesmas uma conotação negativa que aponta para a discriminação.
Outros dizem que "assim falam as pessoas" e a imprensa reflete o que diz as pessoas na rua...
O que deveria ser perguntado primeiro é onde as pessoas aprendem a falar. Onde os leitores aprendem a falar sobre os imigrantes? Não é inato. Têm que aprender de alguma forma. Muitas vezes as fontes que nutrem essas formas de falar sobre os imigrantes são as elites. Um exemplo claro sobre isso encontramos nas guerras balcânicas e no extermínio das populações islâmicas na Bósnia. As representações e palavras negativas não vinham do povo, mas vinham dos nacionalistas extremistas através da rádio sérvia. Eles inventavam essas formas negativas de ver os outros. Então a imprensa desempenhava um papel fundamental com o uso de metáforas, com títulos, manifestando umas coisas em detrimento de outras, com exageros e com cifras arbitrárias e com toda a gama de possibilidades que a imprensa possui para tratar de um tema. Então, não tinha porquê estranhar o fato das pessoas imitarem o que liam nos meios. A maior parte do racismo e das palavras de discriminação não se inventa na rua, mas vem das elites. O argumento de que a imprensa somente reflete o que diz o povo é outro mito que simplesmente não encaixa a teoria com a prática. Então, como se pode influenciar nas relações sociais de um país com milhões de pessoas se não for através dos meios de comunicação e dos políticos que se citam através desses mesmos meios. O racismo dos setores populares se torna visível através dos meios de comunicação que reproduzem esses discursos de discriminação. Não os ignoram, mas os enfatizam. E, assim, é uma forma de construir o racismo. Eles, os pobres, os imigrantes são racistas entre eles, dizem os meios das elites. Por isso, os meios buscam "racistas oficiais" em Le Pen ou Haider, mas não vêem o racismo nas universidades, nos jornais ou no Parlamento que pertencem a essas elites.
Na Holanda se fala criticamente destes temas?
O racismo na Holanda é um tema tabu. É um tabu dizer que as elites são racistas. Por isso, a recepção dos trabalhos sobre racismo é muito negativa. Em geral, não querem ouvir. "Nós? Nós não somos racistas, por favor", dizem as elites. E, paradoxalmente, a esquerda holandesa também não quer falar destes assuntos porque tem a imagem de ser progressista e "politicamente correta", desta forma, o racismo é incompatível com eles.
Na América Latina existe uma cultura da discriminação dos povos indígenas e dos pobres. Inclusive, na Bolívia, ocorre o paradoxo de que uma minoria teve o poder de discriminar a uma maioria de indígenas. Como vê o racismo na nossa região?
No ano passado publicamos um livro chamado Dominación Étnica y racismo discursivo en España y América Latina. Ali encontramos que os fundamentos do racismo na América Latina são os mesmos que na Europa. É, basicamente, um racismo europeu, um racismo do homem branco contra os não-europeus, os indígenas e os afro-americanos. Existe, obviamente, muita variação. O racismo depende do contexto. Não é o mesmo racismo na Argentina, no México, Brasil ou Chile. O caso boliviano é específico porque é um dos poucos países onde a minoria age como uma maioria. Isto tem a ver com o poder político e com a representação. Eles deveriam ter a maioria no Parlamento por pura lógica, mas não é assim. Por isso também não tem o poder simbólico, empresarial e intelectual para definir estas relações sociais. Algo similar aconteceu na África do Sul com o Apartheid, onde uma minoria pôde controlar por anos a uma maioria sobretudo pobre e com muitas línguas diferentes. Então, a multiculturalidade da Bolívia -e o mesmo no Brasil- requer uma análise especial sobre quais tipos de racismo estão agindo para sustentar este sistema de poder. A isto se deve acrescentar a discriminação de classe, porque não é só um problema cultural. Muitos na América Latina são racistas, em virtude das classes. "Eu, racista? Mas se minha babá sempre foi negra", diz muita gente nesta região.
Agora vemos uma emergência dos movimentos indígenas que reclamam por um lugar de poder no sistema político...
Vejo que há um incremento muito grande de consciência sobre o que está passando. Há uma década pouquíssimas pessoas falavam na América Latina de racismo. Este processo é paralelo com o que está passando nos Estados Unidos e na Europa. Nesta região, as demandas dos grupos indígenas –minoritários ou majoritários segundo o país– mostram que uma consciência está despertando sobre estes problemas. Percebem que não vivem apenas na pobreza, mas que, além disso, são discriminados em todos os âmbitos de poder. Por isso, existem movimentos fortes de reivindicação de seus direitos. Há uma década, os levantamentos de Chiapas, no México; do Equador, do Peru e da Bolívia apontam a um mesmo objetivo de crítica sobre o que está passando na sociedade.
Certos setores apontam, contudo, que os movimentos indígenas também são racistas já que designam os brancos de forma discriminatória...
O que acontece é que também existe um discurso da resistência. A resistência é uma forma de contra-poder. O racismo é um sistema de dominação e de abuso de poder. Assim, um grupo minoritário que não tem poder na sociedade, por definição, não pode ser racista. Se não aceitam os brancos ou os chamam de forma discriminatória, estamos frente a uma forma de defesa e de resistência. Neste momento não querem esta forma de dominação branco-européia e querem construir outra forma de poder. Isso não é racismo. Racismo não é somente excluir a outra pessoa de outra cor ou outra cultura. Racismo tem a ver sempre com poder, com abuso de poder. Exclui o que tem poder. Discrimina o que tem poder. Se um grupo tem o poder em uma sociedade e abusa desse poder, então, se pode falar de racismo.
Este artigo foi publicado originalmente na revista
http://www.sinpermiso.info
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Teun A. Van Dijk
Nasceu em Naaldwijk, Holanda, em 1943. Desde os anos setenta está intimamente relacionado com a América Latina após a sua união com a psicóloga chilena Flavia Hernández. Obteve o doutorado em lingüística na Universidade de Amsterdã, Holanda. Desde 1999, ensina Filologia na Universidade Pompeu Fabra de Barcelona. O método de análise de Van Dijk pode ser consultado em seu site sobre o tema:
http://www.dicourse-in-society.org