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Perguntas, perguntas, perguntas
Por Washington Araújo em 14/10/2010
Qual o problema do jornalismo? De onde vem esse sentimento de que o nosso jornal já não é mais o nosso jornal? Desde quando o nosso jornal deixou de ser o nosso jornal? Como foi que se tornou árdua a leitura do jornal diário? Por que tenho a impressão que o meu jornal mudou de endereço, de idéias, de linhas editoriais e de eixo? Será que, bem antes que eu trocasse de jornal, este me trocou por outro tipo de leitor?
O que fazer com essa carga de lembranças que eu e o jornal fomos construindo ao longo de tantos anos? Por que me é difícil ler um editorial por inteiro sem levantar três ou quatro bem fundadas suspeitas de que estou sendo enganado e umas cinco ou seis de que eles estão me sonegando algo? Por que o meu jornal muda tanto de roupagem, mas não se arrisca a mudar, ao menos, de erros? Mudei eu ou mudou o jornal?
Por que é que quando o meu jornal diz que errou nunca está se referindo ao erro que realmente me incomodou e perturbou? Por acaso, estamos diante de uma epidemia a contagiar apenas jornalistas e deixá-los tão desaprendidos do ofício de fazer jornal diário? Estarei sendo punido por meu jornal por dedicar mais tempo ao jornalismo virtual que ao impresso? Quando a minha profissão, mesmo sem necessitar mais de diploma, continuará a exigir decência e retidão de caráter?
Físico e virtual
Por que tenho o estranho pressentimento que trocaram a tinta de impressão por naftalina líquida? Onde foi que guardei aquela minha velha ansiedade para ver o jornal do dia seguinte? Por que não verificam se já foi criado algum mecanismo para aferir a vitalidade das ideais de nossos editores, colunistas, repórteres? Terá chegado o momento de buscar o Arquivo Geral quando desejar usufruir a leitura de um bom texto jornalístico? O que fizeram com as grandes reportagens? Por que as notícias se tornaram tão extensamente opinativas e tão exageradamente burocráticas?
Quando é que passei a desconfiar que meu jornal sofria de dupla personalidade, aquela que fazia jornalismo e a outra que realizava atividade político-partidária? Por Deus, posso até ter mudado, mas não tanto quanto o meu jornal, aquele que me apresentava o mundo de ontem e de anteontem.
Por que dezenas de diários estão quebrando em todo o mundo? Por que, apenas nos últimos oito anos, nos Estados Unidos da América 120 jornais diários fecharam suas portas? Por que nem mesmo se salvam aqueles que considero como jornais de referência: El País da Espanha, Le Monde na França, The Times e The Independent no Reino Unido, Corriere della Sera e La Repubblica na Itália? Por que todos eles acumulam fortes perdas econômicas, quando não estão simplesmente no vermelho estão sempre rolando dívidas? E por que os grandes jornais constatam impressionante encolhimento de sua carteira de assinantes?
Por que a empresa editora do Chicago Tribune e Los Angeles Times, assim como a Hearst Corporation, dona do San Francisco Chronicle, decretaram falência? Por que o poderoso grupo de Rupert Murdoch, a News Corp., que edita Wall Street Journal, apresentam prejuízos anuais na casa dos milhões de euros? Por que, para diminuir custos, muitas publicações estão simplesmente reduzindo o número de suas páginas? Por que o Washington Post cancelou a impressão de seu prestigioso suplemento literário "Bookworld"? Por que o Christian Science Monitor decidiu acabar com sua edição de papel e passar a existir apenas na internet? Por que aconteceu o mesmo com o nosso Jornal do Brasil? Por que o Financial Times propôs semanas de apenas três dias para seus redatores? O que pretendem com isso?
Cargas de pessimismo
Por que a imprensa diária paga se encontra à beira do precipício e anseia desesperadamente por fórmulas que lhe garantam a sobrevivência no médio prazo? Por que a imprensa diária continua levando a sério um modelo econômico e industrial que não funciona? Quem garante que a opção por construir grandes grupos multimídia internacionais, como aconteceu nos anos 1980 e 1990, conseguirá enfrentar a proliferação dos novos modos de difusão da informação?
Por que aumenta o número de jornalistas desempregados? Por que desde janeiro de 2008 foram fechados 21 mil vagas de trabalho nos jornais com sede nos Estados Unidos da América? Por que na Espanha, entre junho de 2008 e abril de 2009, 2.221 jornalistas perderam seus empregos? Por que alguns analistas mostram-se reticentes quanto à continuidade de jornais impressos?
Por que Michael Wolf, da Newser, vaticina que muito em breve ao menos 80% dos jornais impressos norte-americanos desaparecerão? O que leva Rupert Murdoch carregar no pessimismo ao prever que na próxima década (que, aliás, já nos bate à porta) todos os diários simplesmente deixarão de existir?
Onde, onde?
O que é que agrava tão mortalmente a velha deliquência da imprensa escrita diária? Será que a devemos debitar apenas à crise econômica global que provoca enormes perdas da publicidade e ao mesmo tempo forte restrição de crédito? Quando foi que a informação passou a ser mercantilizada de forma tão escancarada? Como a perda de credibilidade tem contribuído para o ocaso da imprensa escrita? Caminha para ser letal ao segmento da informação impressa a concorrência com a imprensa gratuita?
O envelhecimento dos leitores tem papel determinante na caótica situação atual? Que outros males estruturais poderíamos citar para reflexão dos que se interessam por assuntos da mídia? Por que, hoje, cerca de 35 milhões de pessoas no Brasil já usam o celular para navegar na rede e, em uma imaginária "outra ponta", o número de leitores de jornais só faz cair, ano a ano?
Por que no Brasil a questão da sobrevivência da imprensa escrita é secundária à questão da liberdade de expressão? O horror econômico que se avizinha para a imprensa brasileira é decorrente do cerceamento à liberdade de expressão? Por que é mais seguro saber do desenvolvimento alcançado no Brasil por intermédio da imprensa que circula no exterior do que através da nossa imprensa? Por que é que diante dos novos "pecados capitais" do jornalismo os cidadãos se sentem vulneráveis em seus direitos? Onde é que vamos buscar informação confiável e de qualidade sobre qualquer assunto importante? Onde buscar a verdade dos fatos? Onde buscar a verdade? Onde buscar? Onde?
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Paradoxos soturnos às vésperas do segundo turno
Por Eugênio Bucci em 15/10/2010
.1.
Há dias, neste Observatório, anotei que a pecha de inimiga da liberdade de imprensa caiu sobre Dilma Rousseff, mas normalmente é José Serra que vitupera contra repórteres (ver "Memórias sonolentas para eleições violentas"). Aconteceu agora outra vez, conforme registra a reportagem de Breno Costa na Folha de S.Paulo de quinta-feira (14/10).
O fato se deu na véspera, em Porto Alegre. O candidato do PSDB à Presidência acusou o jornal Valor Econômico de atuar em favor da adversária Dilma Rousseff. "Por duas vezes", registra a Folha, "o tucano ignorou perguntas de jornalistas, afirmando que eram ‘pauta petista’." Segundo a Folha, o abespinhamento foi mais longe. Questionado pelo repórter do Valor sobre o caso do ex-diretor de engenharia da Dersa, Paulo Vieira de Souza, que teria desviado dinheiro de sua campanha, Serra reagiu: "O seu jornal faz manchete para o PT colocar no horário eleitoral".
Por que ele faz isso? Provavelmente para se esquivar. Com a desqualificação dos órgãos de imprensa, o tucano pretende eximir-se do imperativo de responder as perguntas que o público tem todo o direito de formular. E agora convivamos com essa: o jornal Valor Econômico é petista e está a serviço do rousseffismo. Não é possível que Serra acredite no que diz. Ou, melhor, possível talvez seja, mas é inacreditável que ele acredite no inacreditável.
Quanto aos leitores do jornal, esses então merecem apenas o desprezo. Esses leitores, que também são eleitores, bem que apreciariam bastante um esclarecimento, por parte do candidato tucano, sobre as acusações de que o ex-diretor da Dersa teria sumido com 4 milhões de reais dos cofres eleitorais do PSDB. Mas eles que vão bater em outra freguesia. Quem mandou eles lerem jornal petista?
O que nos conduz ao outra contradição.
.2.
A candidata Dilma Rousseff abriu sua mortífera participação no debate de domingo (10/10), na Rede Bandeirantes, bradando que não faz acusações sem provas. Em seguida, anunciou, em alto, muito alto, e nem tão bom som, que o ex-diretor da Dersa havia mesmo surrupiado os mencionados milhões. Não provou. Será que era mesmo verdade? Agora, a julgar pelas declarações de correligionários de Serra, eleitor é induzido a crer que tudo não passava de invenção. Será?
Recapitulemos. A história do desvio apareceu na revista IstoÉ. Até o início da semana, a versão dada na revista vinha prevalecendo. Agora, na Folha de quinta-feira (13/10), em matéria de Mônica Bergamo, um tucano de alta patente desautoriza o semanário. Escreve Mônica Bergamo:
"Eduardo Jorge, vice-presidente do PSDB, diz que não deu essa declaração. A informação foi publicada pela revista IstoÉ. ‘Minha frase foi distorcida’, disse. Ele afirmou que mandou carta à revista e que ‘o conteúdo publicado leva a um raciocínio exatamente ao contrário’ do que afirmou. A revista não comenta."
Dilma acusou sem provas? Ou foi Eduardo Jorge que amaciou?
E quanto a José Serra? Por que não põe tudo às claras logo de uma vez?
.3.
Serra, de vez em quando, desanca uma emissora, um jornal e um programa e se põe enfezado: "Não brinco mais".
Alguém deveria avisá-lo de que, bufando assim, ele depõe contra todos os veículos aos quais dá entrevistas sem reclamar. Quando bate o pé e não fala ao Valor, alegando que o Valor é petista, ele está sugerindo que todos os outros para os quais faz o imenso favor de ditar suas sapientes declarações são todos tucanos. Sem perceber, quando acusa este ou aquele de petista, está acusando os outros de tucanos.
Mas ele provavelmente não sabe o que faz. Coisas da ideologia.
Fora isso, onde é que iríamos parar se, para dar uma entrevista, os candidatos começassem a solicitar atestados de antecedentes ideológicos aos órgãos de imprensa? O que aconteceria se Dilma Rousseff parasse de conversar com os repórteres do jornal que declarou apoio a Serra? Quer dizer então que os leitores do Valor Econômico não têm mais direito de saber que fim levaram os tais 4 milhões de reais só porque ele, Serra, acredita que o Valor faz campanha para a sua adversária?
Alguém deveria ensinar a José Serra que a liberdade de imprensa – que inclui a liberdade de perguntar o que ele não gosta de responder – inclui o direito de um jornal, se quiser, fazer campanha para Dilma Rousseff, assim como inclui o direito dele, Serra, de dizer que um jornal que notoriamente não faz campanha para Dilma Rousseff está fazendo campanha para Dilma Rousseff. Aliás, que mesmo se um jornal fizesse campanha para Dilma Rousseff, esse jornal teria o direito de perguntar a ele onde é que andam os tais 4 milhões. Se quisesse ser bem educado, Serra deveria apenas responder.
Em resumo (paradoxal): ao dizer que um diário está a serviço de Dilma e fechar a cara, insinua, inadvertidamente, que os diários para os quais sorri estão a serviço dele mesmo, obrigado.
.4.
A pauta do aborto já deu o que tinha que dar, todo mundo sabe, mas nela também reside uma incongruência que merece registro. Vamos lá.
Assim como o candidato do PSDB tenta desqualificar jornais para, com base na desqualificação, esquivar-se da pergunta, o staff rousseffista – tanto o staff pago quanto o voluntário – empenha-se em desqualificar o tema (aborto) para, com base na desqualificação, esquivar-se de dizer o que a candidata pensa disso.
Tudo bem que o nível da discussão desceu às profundezas do porão dos infernos, mas há gente que considera o assunto relevante. E então.
Pelo modo como argumentam os rousseffistas, parece que todo o falatório deveria ser abortado. Tudo seria produto de uma grande cortina de fumaça, fanatismo religioso, insanidade, loucura, irracionalismo. Tudo deveria ser ignorado. Eles se esquecem, no entanto, de que essas agendas não se propagam no vácuo. Não foi ninguém do PSDB que jogou um panfleto de uma avião em cima da Basílica de Aparecida e, com isso, conseguiu tumultuar o processo eleitoral. Eles se esquecem de que no chão, em Aparecida (SP), no Círio de Nazaré, em Belém (PA), no Brasil inteiro, existe gente que dá importância para isso. Existem homens e mulheres que, vale lembrar, têm título de eleitor e gostariam, assim, candidamente, de saber o que a Dilma acha desse negócio.
Provavelmente esses brasileiros têm noção de que não cabe ao presidente da República implantar a prática do aborto nos hospitais públicos. Elas têm alguma noção de que isso depende de lei. Mas, para elas, saber o que pensa sobre essa matéria a pessoa que vai comandar o Poder Executivo e representar o Estado é de alguma relevância. Isso, claro, na opinião delas – que é tão legítima quanto a opinião de qualquer um de nós.
Pois essa opinião deveria, também, merecer algum respeito.
.5.
Mais Folha.
O artigo de Fernando Barros e Silva, na página 2 (terça-feira, 12/10), fala do principismo e do pragmatismo na esquerda. Nesse caso, mais que paradoxo, mais que contradição, talvez devêssemos falar em antinomia. Comecemos pelo que diz o artigo, sob o título "Prática e moral: uma nota".
"Numa perspectiva de esquerda, a ‘boa política’ deve se colocar entre o principismo e o pragmatismo, rejeitando-os mutuamente. Presa só a princípios, a política se converte em dogma e cai no moralismo; indiferente a eles, se banaliza ou legitima o vale-tudo. O PT, em sua história, migrou de um polo a outro. No seu início, não fazia alianças, não deu apoio a Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, recusou-se a assinar a Carta de 1988 etc. Hoje, no poder, o partido afaga mensaleiros e aloprados, passeia de mãos dadas com oligarcas etc.
O que é mais necessário no Brasil atual: atacar o principismo (inexistente) da esquerda ou criticar o vale-tudo ético a que a ela sucumbiu sem medo de ser feliz?"
Nada a discordar. Mas a essa fórmula devemos acrescentar um elemento e subir um nível. Na cultura presente da esquerda – refiro-me à esquerda que "sucumbiu sem medo de ser feliz", aquela que soube se organizar nas fissuras do Estado, gerenciando o capital – o principismo é quem autoriza o pragmatismo. Hoje, nos ambientes de uma certa esquerda errada, o pragmatismo é um prolongamento – não uma negação – do principismo; o primeiro contradiz o segundo na prática (a ponto de promover a crença de que Sarney, Renan e Collor são um atalho para o socialismo), mas o sustenta no plano da fantasia ("Ainda bem que os companheiros Collor, Renan e Sarney nos ajudam a manter viva a bandeira universal do socialismo").
Haja paradoxo. O pragmatismo de(ssa) esquerda é incomparavelmente mais desumano que o pragmatismo da direita. Este, pelo menos, precisa atender no mínimo os fins lucrativos de alguém ali no conchavo. O pragmatismo de(ssa) esquerda cobra seu preço em nacos de consciência por uma mercadoria que não entrega, ou, na melhor das hipóteses, por uma mercadoria que não dialoga com a consciência, mas com a fé. Isso no caso dos bem intencionados, evidentemente. Os outros, já despido das boas intenções, aprenderam a lucrar – e aprenderam a fazer do pragmatismo de esquerda um pragmatismo de ultradireita revestido de universalismo. Ordenaram a corrupção com métodos bolcheviques.
Vai daí que o pior do principismo de esquerda nos nossos dias é o pragamatismo hediondo a que ele conduz – e o pior do pragmatismo de(ssa) esquerda é o principismo que o santifica.
.6.
Agora um pouquinho de Economist, que eu também estudo inglês.
Na semana passada, a revista dedicou uma página ao que chamou de "a transferência de poder no Brasil". Segundo a matéria, é líquido e (quase) certo: o poder vai passar das mãos de Lula para as mãos de Dilma Rousseff. "Os brasileiros parecem prontos a eleger a sucessora que Lula escolheu." Em sua edição, que foi fechada antes do primeiro turno, a Economist foi prudente e abriu a possibilidade de que Dilma não levasse no primeiro turno. Mas avisou: "É difícil imaginar que, no final, ela não seja a vencedora".
Talvez seja mesmo difícil, embora, você tem visto as pesquisas, bem, as pesquisas erram, erram até na margem de erro, mas, ainda assim, será que vai ser mesmo tão difícil?
O paradoxo aqui é de outra ordem. Não está nas pesquisas nem na Economist, que eu só citei para valorizar o meu artigo. Muitas outras publicações, nacionais e estrangeiras, como se costumava dizer, apostaram na mesma direção. Baseadas em pesquisas, for sure. O paradoxo está, agora, na onda de protesto que não houve. Isso mesmo: o paradoxo está no que não está. O paradoxo está no protesto que não aconteceu.
Em toda parte, o fato de a candidata de Lula não ter vencido de primeira foi interpretado como surpresa, como um susto, como um anticlímax. Sou tentado a dizer que a imprensa mundial errou sua aposta. E, atenção, errou a favor do rousseffismo. Aí é que eu pergunto, caro leitor do Observatório: você já imaginou o que aconteceria se o erro tivesse favorecido o Serra? Nós teríamos uma avalanche de denúncias da mídia planetária partidária. Circulariam artigos e mais artigos dissecando as entranhas conspiratórias da imprensa globalitária. Tudo seria apresentado como um grande golpe que fracassou.
Mas, como o erro beneficiava os rousseffistas, tudo passou assim, feito uma brisa inocente. Ou meramente desinformada. E, no fim, não foi muito mais que isso. Além de, claro, ter sido também um paradoxo.